Set./2015
Próximo lançamento
UM DIA DE CADA VEZ
7 novelas precárias
Vol III da Trilogia do Pesadelo
transcrição parcial de uma novela
na página Obras Inéditas
(projecto de capa)
Publicado em Março/2015
Em edição dupla – papel e e-book
transcrição do Capítulo 9 na página Obras Inéditas
C A P A
Contracapa
BADANA DA
CAPA e BADANA
DA CONTRACAPA
Lançamento do Novo livro após uma ausência
de 22 anos: dia 15/Maio em Lisboa
365 contos * 727 págs.
* 20 €
capa
contracapa
marcador
Apresentação da obra
«Um Ano em Cheio»,
730 págs.
ChiadoEditora/2014
1. Os contos são designados digitais
porque são estórias representativas da Era Digital e porque são estórias com impressões digitais.
2.
Neste extenso conjunto de contos o autor faz uma radiografia completa da
nossa sociedade nos anos mais recentes, abordando praticamente todos os temas quentes relevantes, desde os
jovens negligenciados aos velhos que vegetam na solidão, debruçando-se mais
assiduamente sobre as tragédias sociais derivadas da colonização do país pela
nefanda Troika (desemprego, empreso precário, reduções salariais, medidas
repressivas e de coacção, problemas de abandono e de carências, criminalidade,
esquemas engenhosos de desenrascanço, etc. etc., e sobretudo o clima de
crispação, de revolta e de resignação, de solidariedade e de egoísmo, que
caracteriza o naufrágio social e moral em que vamos soçobrando).
3.
Apresentam-se seguidamente cinco
contos exemplificativos de situações atrás referidas – cujos tópicos
particulares se deixam à argúcia e à sensibilidade dos leitores destas linhas –,
sendo redundante observar que os outros 360 contos, ressalvadas as peculiares
estórias ficcionais, são em tudo semelhantes aos desta amostra.
4. A finalizar, observa-se que esta obra
constitui o Volume I de uma Trilogia do Pesadelo, cujo Volume II é um romance com o título de Mosquitos por cordas no Lodaçal – e, já agora, uma inconfidência:
o Avião não morre quando é
defenestrado no conto de 31 de Dezembro, mas sofre uma lesão que o deixa
paralítico e no fim acaba eleito presidente-fantoche da Câmara Municipal do
Lodaçal, sendo portanto a freguesia elevada a vila e sede de concelho em razão
de diversos interesses obscuros de gente duvidosa – e o Volume III será um
conjunto de 7 novelas sob o
título Um Dia
de Cada Vez.
Nota: a quem possa interessar e por quaisquer razões relativas
à publicação do livro, os contactos da Chiado Editora estão disponíveis em www.chiadoeditora.com
Contos extraídos do livro:
Escaldão numa manhã de geada
03/Jan.
– Às oito da matina, no silêncio da rua deserta apenas percorrida por uma brisa
gélida, um vulto hesitante caminha lenta e mecanicamente, indiferente ao frio e
à solidão reinante: é o Bento Pipa que recolhe à sua barraca, muito concentrado
a espremer os neurónios para que as pernas não cedam à fadiga de uma noitada de
borga e os vapores etílicos lhe turvem a visão.
Bruscamente, ao voltar de uma esquina,
quase esbarra com outro vulto trôpego, negro e encolhido na soleira de uma
porta: é a Dona Capitolina, sua antiga mestra, que, segurando numa mão uma
bengala e um saco de plástico com três carcaças, procura afincada e
ingloriamente abrir a porta com a outra mãozinha engelhada e trémula.
Estacando de súbito, Bento Pipa cruza os
braços sobre a peitaça desgargalada até quase ao umbigo, faz outro tremendo
esforço para se manter imóvel na vertical, e, afivelando um sorrisinho velhaco
na focinheira lívida com manchas escarlates, queda-se, impávido e sereno, a
contemplar o deprimente espectáculo das repetidas e infrutíferas tentativas da
velha com mais de oitenta anos.
-- Ah, és tu, rica prenda – resmunga Dona
Capitolina, olhando-o desdenhosamente por cima do ombro, enquanto procura rodar
a chave que teima em saltar da ranhura da fechadura. – Ainda andas a festejar o
ano novo? Tresandas a vinhaça até mais não.
-- Impossível. Não bebi uma gotinha.
-- Não bebeste…
-- Pois não. Estivemos a entornar umas
garrafinhas de uísque.
-- Má rês –
remata a Dona Capitolina, irritada e rancorosa.
Acto contínuo, a velha mestra desenterra
das catacumbas da memória uma pazada de miseráveis pirraças da autoria do
excomungado Bento Pipa e sublinha com mais energia, ressentimento e raiva:
-- Má rês, é o
que tu és, desde pequenino.
Porém, o visado não acusa o golpe nem se
dá ao incómodo de se defender, para não estraçalhar o mórbido gozo que
secretamente o inebria e permanece firme e hirto de olhos cravados nos gestos
destrambelhados da velha que começa a sucumbir à impaciência.
-- Custava-te muito abrires-me a porta,
meu valdevinos? – grunhe Dona Capitolina, numa censura
áspera, procurando ferir-lhe o orgulho de macho.
-- Abra-a vossemecê, pois que não tem
nenhuma mazela nas unhacas. O seu mal… o seu mal é a vista, tiazinha.
-- A vista? – repete
Dona Capitolina, perplexa, porque, apesar da avançada idade, nem para enfiar
uma agulha precisa de lunetas.
-- A vista, sim senhora, porque se quer
que eu faça uma boa acção deve estar
a ver-me vestido de escoteiro, quando tem à frente uma má rês em mangas de
camisa.
São assim as coisas, nestes sítios.
Um míssil furtivo
25/Jan.
– Na tarde anterior, procedendo ao reconhecimento
dos arrabaldes do bairro, porque as oportunidades surgem, desvanecem-se e
renovam-se regularmente mas sem pré-aviso, ao passarem demasiado perto do muro
de uma moradia, o Avião e o seu
acólito Grunho apanharam um valente
susto com o ataque súbito e enraivecido do cão de guarda, um mastim negro, feio
e possante como o mítico Cérbero.
-- Fonix
– guinchou o Grunho,
lívido e arrepiado. – Este cabrão tá a pedir uma sandes de frango com vidrinho
moído.
-- Népia –
discordou o Avião, depois de uns
momentos de reflexão. – Logo à noite metemo-lo para nosso sócio.
Bem dito, melhor feito, nessa noite
roubaram a fera e prenderam-na com uma corrente num prédio cujas obras estavam
embargadas há imenso tempo, deixando o bico sem comer nem beber até ao dia
seguinte às três da tarde, quando o Avião,
acompanhado do Grunho e de mais uns
quantos rapazolas do bando, foi passear, à trela e com açaime deliberadamente
alargado, o seu novo e horrível luxo. É claro que, como o bicho estava
esfomeado e tenso com as largas horas de prisão e tinha força que nem um
cavalo, era dificílimo de controlar e por isso se cansaram depressa e entraram
num café a retemperar as forças. Escusado será também dizer que o Avião deixou escapar a tela, que um
membro do gang desinquietou o quadrúpede com um bocado de carne escondido no
bolso das calças e que, num ápice, estoirava uma revolução mexicana no
estabelecimento, com o cão a correr desaustinadamente no pequeno espaço e a
ladrar furiosamente, as cadeiras a voar, as mulheres aos gritos, loiça a
esfrangalhar-se estrepitosamente no chão, os empregados a perseguir
atabalhoadamente o bicho, tropeçando e derrubando a freguesia atarantada,
enfim, um pandemónio medonho, uma algazarra apocalíptica, uma aflição geral
terrífica.
Passados uns bons cinco minutos de
frenético reboliço, o Avião conseguiu
finalmente dominar o animal endemoninhado e saíram todos para a rua,
aparentemente encabulados com o medonho espectáculo que haviam originado, e no
café todos respiram de alívio, ufff!...
Mas a sensação inebriante proporcionada
pela calmaria que se julgava um sonho quimérico durou apenas uns brevíssimos
segundos, porque rapidamente se deram conta que a caixa registadora estava tão
limpinha como quando a desencaixotaram.
Nessa tarde, entre as quinze e as dezoito
horas, o bando reforçado com um canídeo que mais parecia um touro de corrida
espalhou o pandemónio em dez cafés, padarias, lojas chinesas, minimercados e
até uma farmácia da pacata freguesia do Lodaçal.
Mas o mais extraordinário destas façanhas
a um tempo hilariantes e deprimentes é que ninguém ficou a perceber como,
quando e quem limpou as caixas registadoras.
O Avião,
não, de modo nenhum; quando muito, um
míssil furtivo.
A pescadora de palavras
29/Jan.
– A primeira vez que a viu, às oito da manhã, com o gelo que tem feito, achou
estranho, mas, numa guinada rápida do pensamento, lembrou-se que os velhos
dormem menos e esqueceu rapidamente o assunto. No outro dia, mais ou menos à
mesma hora, quando veio ver o tempo que fazia para se agasalhar em conformidade
e viu outra vez a velha debruçada na janela em frente da sua mansarda, um
ligeiro arrepio de contrariedade lhe eriçou o pêlo, porque era só o que
faltava, estar permanentemente sob a vigilância de dois olhos indiscretos,
ainda por cima ramelosos. No terceiro dia em que abriu as portadas e o seu
olhar ensonado esbarrou naquele espectro soturno e imóvel, arreliadoramente
inquisitivo, teve de cerrar os maxilares para não proferir uma obcenidade
afrontosa – e por isso mais estonteado ficou quando a velha, inesperadamente, o
saudou numa voz arrastada e que se queria cordial:
-- Bom dia, vizinho – e o sorriso mole e
descolorido escorreu-lhe da boca flácida para o gradeamento do parapeito e
ficou a pingar, lânguido e tristonho, na calçada encardida.
-- Ah, bom dia – respondeu-lhe
assarapantado, num tom neutral, nem agreste nem amável.
Jovem pintor vindo da província à procura
de fama e glória citadina e depois universal, Carlos da Fonseca acabara de
arrendar aquela mansarda e, fanaticamente empenhado em se consagrar de corpo e
alma à sua arte, apostado em ignorar e dar ao desprezo tudo o que fosse
exterior ao seu fulgurante sacerdócio, a simples imposição daquele vulto
expectante causava-lhe distúrbios viscerais; porém, com o decurso do tempo
foi-se habituando à figura da velha que semelhava quase um adorno vetusto da
escalavrada paisagem urbana e, a determinada altura, quiçá porque a solidão em
que se couraçara o tornava, paradoxalmente, sensível às singularidades do
exterior, a aparente bisbilhotice da velha despertou-lhe a curiosidade e
resvalou deliberadamente para o misterioso campo da contra-espionagem.
Não demorou muito a descobrir uma manha
deliciosa da velha para meter conversa com quem passava na rua: deixava cair
uma carteirinha de cabedal, provavelmente atafulhada de papéis inócuos, e
depois fazia descer um cesto na ponta de uma corda de nylon – sistema que
também usava para recolher compras que outras vizinhas lhe faziam, porque pelos
vistos ela não saía à rua, presumivelmente em razão de
qualquer enfermidade incapacitante – e, referenciando lamentosamente os seus
achaques, solicitava o favor de a ajudarem a recolher o objecto caído.
Primeiro, a astúcia da velha divertiu
bastante o jovem pintor, naturalmente predisposto à poesia das acções
irreverentes ou bizarras de todos os excêntricos, mas, como o truque se repetia
amiúde, começou a enfastiar-se com a rotina monótona; mais tarde, porém,
ocorreu-lhe uma terceira perspectiva que o deixou bastante angustiado: era
doloroso pensar e aceitar que, no fim de uma vida longa e diversificada,
entrelaçada de mágoas e alegrias, uma pessoa se visse confinada ao seu
apartamento e tivesse de usar um cesto para pescar palavras
avulso e circunstanciais.
Nessa noite Carlos da Fonseca dormiu
pessimamente, porque uma situação anódina punha em causa as suas convicções
mais arreigadas: a finalidade da arte era reconstruir o mundo e reescrever a
vida, magníficos desígnios completamente irrelevantes perante os dramas reais
que se assomavam às janelas do mundo carcomido onde a vida estagnara, e daí
perguntar-se se o artista era um profeta ou um bobo inconsequente. Pela manhã,
já alta, o seu dilema permanecia insolucionável, mas pelo menos procurou
encontrar uma alternativa que desse algum sentido à sua ambição deliciosamente
asfixiante:
-- Vou ao mercado, vizinha. Quer que lhe
traga alguma coisa?
O que é lindo e calha bem.
Mistérios do nevoeiro
13/Fev.
– Para além de fazer gáudio em proferir umas boutades extravagantes, o senhor Amadeu tem alma de poeta – se
porventura esta descrição não é um rematado pleonasmo –, mais exactamente de
poeta nostálgico de epopeias quiméricas diluídas nas brumas da História que
gosta de desenterrar como quem se embriaga ronceira e metodicamente. Um dos
seus locais eleitos para esta variante de catarse apaziguadora e deslumbrante
é, infalivelmente, o mítico Terreiro do Paço, com a imensidão da praça a
convidar à colonização e o Tejo rumoroso a aliciar o espírito ávido de
aventuras e permanentemente oprimido pela turba que se acotovela.
Bonacheirão e complacente, sacerdote da
solidão e pastor de sonhos plácidos, o senhor Amadeu não consegue compreender o
frenesim da multidão e o egoísmo feroz e tacanho que cada um ostenta e exerce
acerbamente, quiçá, e dramaticamente, com esplendorosa genuinidade – por isso
às vezes também se agasta e desatrela o seu talento cáustico, para variar, com
exemplos práticos.
-- Por obséquio – diz numa manhã de
nevoeiro, que não traz D. Sebastião e que esbate a ala das arcadas fatídicas
para o infausto D. Carlos, com humildade, mas também com alguma imperatividade
difícil de ignorar, procurando deter um dos passeantes altivamente
electrizados. – Aquele circulozinho esbranquiçado… é o Sol ou é a Lua?
O interpelado fica um pouco atarantado com
a pergunta desconcertante, ergue os olhos para o esbatido disco luminoso,
franze as sobrancelhas e, dando uma mirada rápida ao interlocutor e retomando a
marcha inadiável, responde com sincero desalento:
-- Desculpe, mas não sei. Não moro aqui.
Um homem contrariado
21/Jul. – Com franqueza, acordarem desabridamente uma pessoa ao
raiar da bela aurora não tem graça nenhuma; e se uma pessoa se deitou de
madrugada por passar a noite a gerir os seus negócios na feira da terra onde
procura o sustento da família, é caso justificável para dobrar a indisposição;
se ainda por cima acordam uma pessoa com um concerto de vigorosas palmadas na
chapa da carrinha que serve de quarto, é um abuso de fazer perder a paciência a
um santo; finalmente, se a causa de tão sacrílega atitude é um grosseiro
equívoco da polícia, é natural que um homem como o pacato senhor Elísio fique
deveras contrariado e com bastas razões para pensar que estas coisas
inadmissíveis só lhe acontecem por ser de etnia cigana.
Porque, indo ao âmago da questão, ou ao
destrambelhado objectivo da aparatosa intervenção policial, afinal o que se
passa? Rigorosamente, nada, aliás, como anteriormente, uma vez e sempre vítima
de acusações apressadas e descabeladas, ou vice-versa, cujos incómodos podiam
muito belamente evitar se se dignassem ouvi-lo, primeiro e até ao fim, de cujo
direito básico a bem da justiça e da verdade os autos não rezam.
Há uns anos a esta parte que vem sendo
acusado de tráfico de pessoas e de exploração de mão de obra
escrava, com a suposta libertação dos cativos através de desmedidas e
folclóricas operações da polícia lusa e espanhola, quando, afinal, as coisas se
passam exactamente ao contrário do que mentirosamente deixam escrito nos
papéis, fazendo orelhas moucas às suas chãs explicações: as pessoas abalaram
com ele de sua livre vontade para trabalharem em explorações agrícolas
espanholas porque aqui não tinham trabalho nem esperança de o encontrar, viviam
em condições muito humildes porque assim o desejavam para economizar o máximo
possível, e algumas encontravam-se ali há mais de dois anos por essa mesma
razão, e se não lhes foi encontrado dinheiro foi porque elas mesmo declinaram
receber periodicamente, para não cederem a tentações, porque o seu objectivo,
convirá repetir, é o de economizar o máximo possível para regressarem com um
bom pé de meia, aliás, qualquer pessoa de boa fé
facilmente compreende que só um palonço muito grande acumula jornas numa caixa
de sapatos num monte que fica deserto os dias inteiros. Os documentos dos
contratados em seu poder? Oh, mas que grande dúvida: foram-lhes dados a guardar
pela mesma razão por que não guardam as jornas no taleigo dependurado num prego
ou na caixa de sapatos escondida debaixo do catre.
Esmiuçando os equívocos policiais, a
presente investida não é por essa estafada acusação de tráfico de pessoas, nem
podia ser, porque este ano ele passou o negócio para o filho mais velho, por
começar a sentir o peso dos anos e uma madrasta vida de muitas tribulações, mas
sim porque dá cama e mesa a um rapazola meio esparvoado que o ajuda no comércio
ambulante de roupas e que alguém com muita ruindade referenciou à polícia como
sendo vítima de escravidão.
-- Desta vez ainda estão mais errados que
das outras todas – grunhe o senhor Elísio, sem esconder a contrariedade que lhe
amarga a boca. – É que nem sequer apanhei o rapaz em parte nenhuma! A verdade
verdadinha, tomem nota, se fazem favor, e não me chateiem escusadamente, é que
o troquei por um carro com o meu filho.
Tão simples como isto.